Narciso montou em sua casa um compartimento secreto todo forrado com espelhos. Até mesmo o acesso era escondido. No seu quarto normal de dormir havia uma parede falsa deslizante, que dava entrada ao dito cômodo. Uma vez no interior deste, somente ele sabia o meio de sair, pois quando fechado por dentro as paredes se acoplavam tão perfeitamente, que não se sabia onde terminava um espelho e nem onde começava o outro. Dentro deste, tudo era espelhado. O chão, o teto e as paredes. Havia uma pequena entrada de ventilação no canto superior da parede, e uma mini lâmpada no teto que dava claridade esfusiante ao ambiente devido a multiplicação de sua luz através dos espelhos. Os móveis se resumiam numa cama de casal, cuja armação era toda espelhada e as roupas de cama eram todas na cor prata. E, curiosamente, um espelho com moldura esculturada em madeira imitando ramagens de flores também pintada em prata. De forma que, na sala, somente destoavam a roupa de cama e a moldura, de resto tudo mais eram espelhos.
Era ali, naquele santuário multifacetado, que Narciso se escondia do mundo. Era seu lugar predileto. Neste lugar Narciso meditava, nú como veio ao mundo. Aquele era um lugar puro, isento da sujeira cotidiana, portanto ele, ou que entrasse ali, só se estivesse nú. Eventualmente,
Narciso e sua mulher faziam amor no quarto dos espelhos. Tinham a sensação de participarem de uma orgia, com milhões de corpos nús a sua volta, milhões de beijos, milhares de penetrações e múltiplos orgasmos disseminados através das lâminas frias dos vidros espelhados. No final se davam conta que eram somente os dois, na cumplicidade estreita do matrimônio. E assim eram felizes.
Narciso considerava aquele ambiente sagrado, pois ali se via como realmente era. Sem subterfúgios. Considerava que seus pensamentos se multiplicavam com as imagens. Acreditava que chegaria o dia em que conseguiria atingir o nível supremo da perfeição, e aí, nesse momento, falaria com sua própria alma.
Os anos se passaram. A mulher de Narciso veio a falecer. E, com isso, Narciso se isolou ainda mais do mundo. Passou a morar praticamente dentro do quarto dos espelhos, de onde só saía para se alimentar. Nada mais importava no mundo lá fora. Agora era só ele e seus pensamentos. Narciso e seu ego, na busca incessante da perfeição.
E o tempo foi passando e deixando suas marcas. Um dia durante suas meditações, Narciso sentiu uma forte dor no peito. Levantou-se da cama e, cambaleante, tentou abrir o compartimento do quarto dos espelhos na tentativa de buscar ajuda. Não houve tempo. Narciso tivera um ataque fulminante do coração. Seu corpo, já sem vida, ali estirado no chão espelhado do quarto. Sua imagem nú e esquelética, se multiplicando aos milhões. E com elas, finalmente, se desprendia a sua tão almejada alma. Justamente no momento mais desejado por Narciso. No momento em que ele poderia, enfim, conversar com sua alma. Ele já não estava presente.
Jazia Narciso em seu caixão forrado de espelhos. Em seu rosto ainda podia se notar um leve sorriso de satisfação que, fantasticamente, se multiplicava aos milhões.
Poema do Dia:
O Quarto Dos Espelhos
No quarto dos espelhos
Teu corpo se multiplica
Como um dízima periódica sem fim
Na frente, atrás
À esquerda, à direita
As imagens se multiplicam
Em loucas posições
Teus braços,
Tuas pernas,
Teus grandes glúteos,
Teus lábios absurdamente carnudos,
Teu corpo, enfim,
Milhões de corpos,
Bilhões de corpos,
Trilhões de corpos...
Tantos quanto as estrelas do céu...
E nenhum deles
Definitivamente, nenhum deles...
...É meu...
Richard 2010
sábado, 9 de outubro de 2010
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Penso que o teu quarto de espelhos é o porão onde vc introspectivamente foge da realidade e recria teu mundo particular. Por sinal com muita criatividade.Margaret
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